NÃO É AO MUNDO QUE AJUDAMOS, E SIM, A NÓS MESMOS!
Antes
de considerar com maior extensão a forma pela qual a devoção nos
auxilia em nosso progresso espiritual, permiti-me que abra um breve
parêntese para outro aspecto do que na Índia entendemos por karma.
Todas
as religiões constam de três partes: filosofia, mitologia e ritual. A
filosofia é, primeiramente, a essência da religião; a mitologia a
explica mediante as vidas mais ou menos legendárias dos grandes homens,
as histórias e os relatos de acontecimentos surpreendentes. etc., e o ritual dá a esta filosofia uma forma ainda mais concreta, com o fim de que todos a possam interpretar.
O ritual é karma
obrigatório em toda a religião, pois muitas pessoas não podem
compreender as coisas espirituais abstratas, senão depois de terem
alcançado o suficiente desenvolvimento espiritual. É fácil pensar que
podemos compreender tudo, porém quando chega o momento de pormos em
prática nosso conhecimento, vemos que é muito difícil entendermos as idéias abstratas.
Portanto,
os símbolos constituem um poderoso auxiliar, que não podemos abandonar.
Desde tempos imemoriais, os símbolos foram usados Por todas as
religiões. Em certo sentido, não pensamos a não ser por meio de
símbolos; acaso não são as Palavras símbolos do pensamento?
E
ainda podemos dizer que o próprio universo é um símbolo que oculta
Deus. Esta simbologia não é mera concepção da Mente humana. A simbologia
religiosa é resultante de um crescimento natural, e se assim não fosse,
como é que determinados símbolos estão indissoluvelmente associados a
determinadas ideias?
Certos símbolos são universalmente conhecidos. Muitos de vós pensam
que a cruz nasceu com o Cristianismo. Porém é um fato comprovado que
antes do Cristianismo existir, antes de Moisés ter nascido ou que Os
Vedas fossem conhecidos, antes de se registrar qualquer conhecimento, já
existia este, símbolo.
Durante
certo tempo acreditou-se que fosse criação dos budistas, porém
descobriu-se que já era conhecido na Babilônia e no Egito. O que
demonstra Que estes símbolos não podem ser meros sinais convencionais;
deve existir alguma associação natural entre eles e a mente humana.
A linguagem não é convencional; as idéias se correspondem com as palavras de maneira natural. Os símbolos que representam idéias
podem ser sons e cores. Os surdos-mudos devem pensar mediante símbolos
que não são sons. Cada pensamento cria uma forma específica; isto se
chama na filosofia sânscrita, nainarupa, nome e forma. É tão impossível criar convencionalmente um sistema de símbolos como criar uma linguagem.
Nos símbolos ritualistas conservamos uma expressão do pensamento religioso da humanidade. É fácil dizer que são inúteis
os rituais, templos e outros elementos de adorno; até as crianças podem
fazer esta afirmação. Mas é fácil comprovar que aqueles que se ligam
aos templos são algo diferentes daqueles que se abstêm de fazê-lo.
Por
conseguinte, associar-se a um determinado templo, a rituais e outras
formas concretas das religiões, tende a despertar na mente de seus
devotos as idéias simbolizadas por essas coisas concretas; e
não se ignora que todos os rituais são simbólicos. O estudo e a prática
destas coisas fazem parte de Karma-Yoga.
No
entanto, esta ciência da ação possui muitos outros aspectos. Um deles é
conhecer a relação entre o pensamento e a palavra, e quanto pode ser
adquirido mediante o poder desta. Em todas as religiões é conhecido o
seu poder, e até mesmo alguns afirmam que a criação teve origem na
palavra. O aspecto externo do pensamento de Deus é a palavra; e como
Deus pensou e quis antes de criar, a criação é resultante da palavra.
Na
violência e precipitação da vida materialista, nossos nervos
endureceram e perderam a sensibilidade. Quanto mais velhos somos e mais
experiências adquirimos, mais insensíveis nos tornamos, e terminamos por não fazer caso das coisas que nos rodeiam.
A natureza humana primeiro
se impõe algumas vezes e nos leva a inquirir e considerar alguma destas
ocorrências; esta reflexão é o primeiro passo para a luz. Além do alto
valor filosófico e religioso da Palavra, vemos que os símbolos sonoros
desempenham papel importante no drama da vida humana.
Eu
vos falo, porém não vos toco; as vibrações do ar causadas por minhas
palavras vão aos vossos ouvidos, tocam vossos nervos e produzem efeitos
em vossa mente. Não podeis impedir isto. Pode haver algo mais
assombroso?
Um
homem chama outro de néscio; este se põe de pé, cerra os punhos e lhe
dá uma bofetada. Vede o poder da palavra. Uma mulher chora desconsolada;
outra passa e lhe dirige palavras de consolo; o desesperado aspecto da
aflita desaparece e começa a sorrir. Pensai no poder destas palavras.
Agi
com potente energia, tanto na mais elevada filosofia como na vida
prática. Noite e dia manipulamos inconscientemente esta força, sem
tratar de indagar sua essência. Conhecer a natureza desta força e
utilizá-la corretamente também é uma parte de Karma-Yoga.
Nosso dever para com os outros baseia-se
em ajudá-los, fazer bem ao mundo. Por que devemos fazer bem ao mundo?
Aparentemente para ajudarmos a nós próprios. Tratar de ajudar o mundo
deveria ser nossa mais elevada aspiração; porém, se pensarmos um pouco, veremos que o mundo não precisa de nosso auxílio.
Este
mundo não foi criado para que vós e eu o ajudássemos. Uma vez li um
sermão que dizia: "O mundo é muito bom porque nos oferece a oportunidade
de ajudar os demais". A primeira vista este sentimento é muito belo;
porém, não é unia blasfêmia dizer que o mundo precisa de nosso auxílio?
Não podemos negar que há muita miséria nele; socorrer o próximo,
portanto, é o que de melhor podemos fazer, ainda mesmo que saibamos que a
única coisa que nisso fazemos é auxiliarmos a nós mesmos.
Quando
eu era criança, tinha uns ratos brancos e os guardava em uma caixa
munida de umas rodas feitas de modo que, quando os ratos andavam nela,
as rodas giravam incessantemente e os ratos ficavam no mesmo lugar. É o
que acontece ao mundo com o nosso auxílio. O único auxílio positivo
consiste em nos obrigar a uma ginástica moral. O mundo não é nem bom nem
mau; cada homem constrói um mundo para si mesmo. Se um cego principia a
pensar no mundo, o suporá frágil ou duro, frio ou quente. Constituímos
uma massa de felicidade e infortúnio; podemos observar isto centenas de
vezes.
Geralmente
os jovens são otimistas e os velhos pessimistas. O jovem tem a vida
ante si, e o velho se queixa porque envelheceu mais um dia; centenas de
desejos que não puderam ser satisfeitos fervem em seus corações. No
entanto, ambos estão em condições idênticas. A vida é boa ou é má,
segundo as atitudes mentais com que a observamos; por si mesma, não é
nada.
O
fogo, por si mesmo, não é bom nem mau. Quando nos dá calor, dizemos:
"Que bom fogo!" Quando nos queima o dedo, o maldizemos. Segundo o uso
que dele façamos, produz em nós uma sensação agradável ou desagradável. O
mundo é perfeito.
Por
perfeição entendemos aquilo que está admiravelmente adaptado a seus
fins. Podemos estar seguros de que caminhará completamente bem sem nossa
ajuda, e que não tem necessidade de que percamos a cabeça por sua
causa.
Todavia,
precisamos praticar o bem; o desejo de fazer o bem é o que de mais
elevado podemos aspirar, desde que aceitemos o princípio de que é um
grande privilégio ajudar os outros. Não vos coloqueis num alto pedestal,
com uma moeda na mão, enquanto dizeis: "Tome, pobre homem".
Agradecei mais do que o pobre, pois deste modo tivestes a oportunidade de ajudar a vós mesmo, ajudando o pobre.
O beneficiado não é de quem recebe, e sim daquele que dá. Agradecei
àqueles que vos deram a oportunidade de ser benevolente e
misericordioso, pois só assim chegareis neste mundo a ser puro e
perfeito. Todas as boas ações nos levam à pureza e perfeição.
Que
de melhor podemos fazer? Construir um hospital, abrir estradas, erguer
asilos de caridade, organizar uma festa de beneficência e reunir dois ou
três milhões de dólares, edificar um hospital com um milhão, com o
segundo dar bailes e beber champanha e com o terceiro deixar que os
administradores roubem a metade, e o resto, finalmente que chegue aos
pobres. Que representa isto? Um golpe de vento destrói tudo em cinco
minutos.
Que
devemos então fazer? Uma erupção vulcânica pode arrasar os nossos
hospitais e nossas estradas. Abandonemos esta conversa inútil de querer
fazer bem ao mundo; ele não precisa do vosso auxílio nem do meu; no
entanto, devemos fazer o bem constantemente, porque isto constitui uma
bênção para nós.
Esta é a única maneira de chegarmos a ser perfeitos. Nenhum dos mendigos que temos auxiliado, nos devem
um só centavo; ao contrário, somos nós que lhes devemos o favor de nos
terem permitido ajudá-los. É erro pensar que nós temos o poder de fazer
bem ao mundo, ou acreditar que auxiliamos tais ou tais pessoas. É um
pensamento falso, e os pensamentos falsos produzem miséria.
Imaginemos
um homem que ajudou seu semelhante e espera recompensa, e como este não
lhe foi grato, ele se sente infeliz. Por que devemos esperar a
recompensa daquilo que fazemos? Agradecei ao homem que permitiu ser
ajudado, considerando-o um Deus. Não é um grande privilégio sermos
permitido adorar Deus ajudando nossos semelhantes? Se estivéssemos
verdadeiramente desligados, nos livraríamos desta expectativa e
poderíamos praticar no mundo muito trabalho útil. Nunca traz
infelicidade nem miséria a ação realizada sem se esperar recompensa. O mundo continuará com suas tristezas e alegrias por toda a eternidade.
Havia
um pobre homem que necessitava de certa importância em dinheiro e, não
se sabe como, tinha ouvido dizer que se ele pudesse se utilizar dos
serviços de um gênio, poderia obrigá-lo a trazer-lhe dinheiro e tudo
quanto desejasse. Por isto estava ansioso por encontrar algum, e saiu em
busca de alguém que lhe facilitasse os meios de consegui-lo.
Finalmente,
topando com um sábio que possuía poderes, pediu-lhe auxílio. O sábio
perguntou-lhe por que desejava um gênio, "É para trabalhar para mim;
ensina-me como posso obtê-lo, senhor, porque necessito muito", replicou o
homem. O sábio disse: "Não vos inquieteis; ide à vossa casa".
No
dia seguinte o nosso homem foi novamente ver o sábio e tornou a
suplicar-lhe: "Dai-me um gênio; eu preciso de um gênio, senhor;
ajudai-me". Por fim o sábio se cansou e lhe disse: "Tomai este talismã,
repeti tal palavra mágica e vos aparecerá um gênio que fará tudo que lhe
determinardes. Mas tende cuidado; são seres terríveis e devem estar
constantemente ocupados; se deixardes de lhe dar trabalho, ele vos
tirará a vida".
O homem replicou: "Isto é fácil, dar-lhe-ei trabalho para toda a minha vida". Foi ao bosque e depois de repetir várias vezes a
palavra mágica, um enorme gênio se lhe apresentou e disse: "Eu sou o
gênio, e fui conquistado por vossa magia; deveis Ter-me ocupado
constantemente, senão vos matarei".
O
homem lhe ordenou: "Construí-me um palácio". "Já está construído", lhe
disse. "Traz-me dinheiro", disse logo. "Aqui está o dinheiro",
respondeu-lhe o gênio. "Abre este monte e edifica uma cidade neste
lugar". "Já está feita”, replicou; "que quereis mais?" Então o homem
começou a temer, por não ter nada mais para mandar fazer, pois o gênio
fazia tudo num momento. O gênio não esperou: "Ou me dais serviço ou vos
mato", lhe disse.
O
pobre homem estava aterrorizado; não havia ocupação para dar-lhe; todo
assustado, correu à casa do sábio e lhe suplicou: "Oh! Senhor, salvai-me a vida". E como este lhe perguntasse o que acontecia,
lhe respondeu: "Não tenho nada mais para mandar o gênio fazer; tudo o
que lhe ordeno, fá-lo num momento, e ameaça matar-me se eu não lhe der
mais trabalho".
Naquela
hora chegou o gênio: "Vou matar-vos", exclamou e se dispôs a fazê-lo. O
homem começou a tremer e a rogar ao sábio que lhe salvasse a vida. Este
lhe disse: "Eu vou encontrar-vos uma saída.
Observai aquele cão que tem a cauda enrolada. Tirai rapidamente vossa espada, cortai-a e mandai o gênio endireitá-la".
O homem assim fez. O gênio pegou a cauda e com muito jeito conseguiu
endireitá-la, porém, sempre que a largava, ela se enrolava de novo.
Durante dias inteiros endireitava a cauda e esta tornava a enrolar-se,
até que por fim exclamou:
"Jamais
me vi em tal aperto; sou um velho e veterano gênio, porém nunca me vi
em tão grande dificuldade. Vou propor-vos um trato: permiti que me
retire e vos deixarei tudo o que já vos dei, comprometendo-me a não vos
fazer mal algum". O homem ficou contente e o aceitou alegremente.
Este
mundo se parece com a cauda enroscada do cão: as pessoas têm lutado
para endireitá-la durante centenas de anos, porém quando a soltam, ela
se enrola de novo. Como poderia ser de outro modo? Todos têm que
aprender primeiro a agir sem se ligar à ação; então já não será um
fanático. Quando compreendermos que este mundo é como a cauda enrolada
do cão, que nunca se endireitará, então não seremos fanáticos.
Se
não houvesse fanatismo no mundo, este progrediria mais rapidamente. É
um erro crer que o fanatismo pode contribuir de algum modo para o
progresso do gênero humano; ao contrário, é uma peçonha que, criando
ódios e cóleras, é a causa das pessoas lutarem entre si, tornando-se
insensíveis à compaixão.
Pensamos
que tudo quanto fazemos ou possuímos é o melhor do mundo, e que o que
não fazemos nem possuímos não tem valor. Assim, recordai-vos do exemplo
da cauda enrolada, para evitar vos tornardes fanáticos. Não tendes
necessidade de vos atormentar nem de perder o sono por causa do mundo;
seguirá seu caminho sem vós.
Somente
quando tiverdes evitado o fanatismo, agireis bem. É o homem mentalmente
equilibrado, de juízo sereno e capaz de experimentar simpatia e amor,
que faz boa obra e se favorece a si mesmo. O fanático é néscio e não
sente; jamais pode modificar o mundo nem se tornar puro e perfeito.
Em síntese, os principais pontos deste capítulo são:
Primeiro,
recordar que somos devedores do mundo e que este nada nos deve. É um
grande privilégio para nós ser-nos permitido fazer algo pelo mundo. Ao
ajudá-lo, em realidade nos ajudamos a nós mesmos.
Segundo,
que há um Deus neste universo. Não é certo que este universo flutue sem
destino e tenha necessidade do vosso auxílio ou do meu. Deus está
sempre presente nele. É imortal, eternamente ativo e infinitamente
vigilante. Quando todo universo dorme, Ele permanece velando; age
incessantemente; as mudanças e manifestações do mundo são obra Sua.
Terceiro, não
devemos odiar ninguém. Este mundo continuará sempre sendo uma mistura
de bem e de mal. Nosso dever é simpatizar com os débeis e amar,
inclusive, os malfeitores. O mundo é um grande ginásio moral, onde
devemos exercitar-nos para ser cada dia mais fortes espiritualmente.
Quarto, não devemos ser
fanáticos, porque o fanatismo é oposto ao amor. Ouvireis continuamente
que os fanáticos dizem: "Eu não odeio o pecador e sim o pecado"; porém
estou disposto a ir a qualquer parte, por longe que seja, para encontrar o homem realmente capaz de distinguir entre o pecado e pecador.
É
muito fácil dizer. Se pudéssemos distinguir bem entre qualidade e
substância, poderíamos chegar a ser perfeitos. Não é fácil fazê-lo. E
quanto mais tranquilos formos e menos alterados estiverem os nossos
nervos, mais amaremos e melhor agiremos.
SWAMI VIVEKANANDA
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